O dia em que o Estrela Polar encontrou uma criança aidética no lixo
O Estrela Polar sempre foi discreto quanto a sua sexualidade, mais pelos roteiristas e pela época em que o personagem foi escrito do que por qualquer outro motivo.
Criado em 1979, ele foi o primeiro personagem LGBTQ+ dos quadrinhos. A primeira vez em que sua opção foi insinuada, foi em Alfa Flight # 7, onde seu criador introduziu um amigo, mas só deixou algo no ar.
O personagem foi criado durante a “praga gay” e os conservadores não veriam sua orientação sexual com bons olhos.
Mas Bill Mantlo tinha outras ideias…
Quando Bill Mantlo assumiu o título, ele não só tentou tirar o personagem do armário como decidiu fazer com que ele fosse uma vítima da AIDS, mas o editorial não aceitou. O personagem até morreu de uma doença misteriosa, mas foi devido ao fato de ser um híbrido humano/fada, o que causou menos danos ao moral de Jean-Paul Beaubier.
(Ficou curioso? Sexta-Feira contaremos essa história).
E assim foi até trazerem o personagem de volta nos anos 90, numa formação “Extrema” da Tropa Alfa composta por: Guardiã, Estrela Polar, Sasquatch, Arma Ômega, o ex Selvagem e além da Aurora, ainda tinha um tal de Windshear, que entrou pro limbo após sua passagem pela série.
E la nave va…
Só que em abril de 1992, a edição 106 chegou nas bancas e gibiterias com a promessa de nos mostrar um Estrela Polar que nunca havíamos visto até aquele momento.
E não é que era verdade?
É seguro dizer que toda a fase de Scott Lobdell e Mark Pacella foi esquecível, menos essa edição.
Nela, durante uma luta com o Mr. Hyde, nosso elfo preferido é arremessado numa lata de lixo onde ele encontra… um bebê recém-nascido.
Consternado e apavorado com a descoberta, ele leva a menina para um hospital, onde descobre que a pequena havia contraído AIDS no útero de sua mãe e estava morrendo. O mutante se torou o Guardião Legal da menina que passou a ser conhecida como Joanne Beaubier e fez de tudo para salvar sua vida.

A exposição da criança imunodeficiente acabou melindrando o Major Mapleleaf, uma espécie de Capitão América canadense que foi criado para dar mais drama à edição. O herói aposentado ficou furioso ao ver todo o tratamento midiático que a menina estava recebendo e decidiu matar a criança.
Uma verdade inconveniente:
Segundo o herói, era injusto uma criança moribunda receber um tratamento que seu filho nunca recebeu. Descobrimos então, que o filho de Mapleleaf era gay morreu de AIDS. Devido a sua sexualidade, ele sentiu na pele todo o medo e o preconceito de uma época onde eles eram tidos como contagiosos e que apesar de felizmente isso ter mudado, os governos não se esforçavam tanto para lidar com essa questão.
Até houve um embate físico entre os dois, mas nem precisava. O Major estava armado com as palavras, e isso era mais do que suficiente. A grande verdade é que Joanne só ganhou a mídia e recebeu o tratamento que recebeu, por ter ligações com um grupo privilegiado.
E era verdade.
Não sei se você viveu essa fase, mas a AIDS era um perigo real e imediato que não poupava ninguém e estava matando muitos criadores. Lobdell, que perdeu amigos para a doença, decidiu que era a hora de alguém falar sobre o assunto e dar alguma pertinencia para a sexualidade do Estrela Polar.
Mais do que qualquer outro, ele precisava ser a voz de seus pares. Ele tinha essa obrigação moral. Devia isso a todos os gays anônimos e conhecidos que morriam todos os dias.
E o Estrela Polar saiu do armário.

Foi uma atitude corajosa. Poucos anos antes, o Estraño, um personagem da DC até conseguiu assumir sua sexualidade, mas o editorial perguntou ao autor quando ele seria curado dessa doença e voltaria a ser uma pessoa normal, como nada aconteceu, o título foi cancelado e o personagem, varrido pra debaixo do tapete.
Felizmente, não foi o que aconteceu com Jean-Paul.
Coragem e ousadia:
Você não conhecia essa história?
Normal. Toda essa fase foi saltada aqui no Brasil. A arte tentava imitar os exageros da Image, que era a moda da época. Caras de mal, excesso de hachuras, anatomia errada, uma diagramação que não era ousada nem careta (só ruim).
Não era agravável de se ver; ainda assim, poucos títulos grandes da editora falaram abertamente sobre a AIDS. A maioria, usou subterfúgios como o Vírus Legado dos X-Men, que foi e não foi a AIDS mutante.
A Tropa Alfa matou a cobra e mostrou o pau criando uma história marcante e emocionante que apesar de todos os exageros, permanece atual.
E sim, a menina morreu, o que deu um tom ainda mais pesado para a história.
Goste você ou não de Scott Lobdell, goste você ou não da Tropa Alfa, essa edição merece um confere.

A questão da visão limitada de ser humano, vigente hoje, por termos acesso a todo tipo de informação, é pior do que a que existia nos anos 80, aonde muitos eram ignorantes e estúpidos. A hipocrisia da aceitação e a falta de maturidade são instrumentos de disseminação do preconceito contra as atitudes de identidade, principalmente a sexualidade que é alvo dos “santificados” idolatras e evangélicos sem discernimento quanto a sua própria condição de homem/mulher ou outro gênero, e quando essa postura falha, transformam-se em políticos revanchistas com tinturas de representantes de Deus e da boa conduta da sociedade. Piada pronta.
Essa exposição qualitativa do Estrela Polar dignifica o caráter daqueles que são marcados como minorias e proporciona espaço a questionamentos de quem se vê como normal ou inibido, consciente ou vitimizado, para que não cause a outros aquilo que diz ser errado. Parabéns aos autores pela iniciativa. Tenho 62 anos e acompanho as aventuras da Tropa Alfa, desde a era da praga gay. Muito Obrigado.
Oi, Miguel. Tudo bem? Sumpa aqui.
Cara, chegamos num momento delicado e polarizado em que nada pode ser discutido, o que é complicadíssimo.
Como diria o porco Napoleão: “Hoje em dia, somos todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”. Vivemos uma liberdade ilusória que depende das pessoas com quem você anda naquele momento. É o caso do filme do Gentilli, que na época, passou batido e virou polêmica cinco anos depois, só porque ele trocou de amizades.
Isso tem mais a ver com o que você falou do que com qualquer outra coisa, uma vez que a tal cena polêmica, que poderia ter sido tirada, passou sem grandes problemas.
A sexualidade do Estrela Polar foi varrido pra debaixo do tapete em mais de uma situação e essa história foi a segunda vez que tentaram usá-lo para falar sobre a AIDS, que foi o COVID dos anos 80. Um COVID direcionado a um grupo específico, ainda assim, um bicho papão que assombraria quem não se comportasse direito. Isso aumentou o preconceito contra pessoas que só queriam viver suas vidas e não faziam mal a ninguém. Tirar o personagem do armário e transformá-lo num porta-voz da causa acabou dando uma profundidade a um personagem que ninguém sabia o que fazer com ele.
Não sei se essa é a primeira matéria nossa que você lê, mas aqui no Metalinguagem sempre tentamos levantar questões pertinentes.
Se foi seu primeiro texto, seja bem-vindo. Convido-te a conhecer nossos outros textos.